Uma abordagem comunitária e de pesquisa para detectar e prever convulsões com a ajuda da IA

A epilepsia é uma doença do cérebro, crônica e não transmissível, que afeta 50 milhões de pessoas, o que a torna uma das doenças neurológicas mais comuns em todo o mundo, segundo a OMS. 

Com diagnóstico e tratamento adequados, 70% das pessoas portadoras de epilepsia podem viver sem crises, tornando o acesso aos cuidados adequados e à detecção extremamente importantes. 

As convulsões podem criar desafios para a independência e para o cotidiano das pessoas portadoras de epilepsia. Elas também podem levar a acidentes de trânsito, com 0,2% das colisões ligados a uma forma de convulsão. Uma equipe da Universidade de Sydney, liderada pelo Dr. Omid Kavehei, decidiu responder a uma pergunta importante: “Podemos melhorar a precisão da detecção de crises na epilepsia e podemos prever uma crise futura?” 

De acordo com a lei em New South Wales, Austrália – sede da Universidade de Sydney – as pessoas portadoras de epilepsia não podem ter sofrido convulsões por pelo menos 12 meses para dirigir. Essa declaração de ausência de convulsões geralmente depende de uma conversa entre o paciente e seu médico, que certifica que não houve convulsões por determinado período de tempo, além de relatórios do paciente. Como nem sempre os pacientes se lembram das convulsões ou têm um membro da família ou cuidador por perto, o processo de certificação pode levar a resultados imprecisos. Os pesquisadores viram uma oportunidade de desafiar o status quo e ajudar os médicos a tomar decisões baseadas em dados. 

Apesar de muita pesquisa e desenvolvimento nas últimas décadas, as estatísticas de epilepsia permanecem quase inalteradas. Por exemplo, cerca de 35% dos pacientes com epilepsia diagnosticada ou confirmada ainda vão enfrentar uma jornada longa e difícil até a lacuna do tratamento da epilepsia, onde não há tratamento disponível nem adequado para eles. “A porcentagem não mudou ao longo do tempo, em 2022 ainda é a mesma de 1990. Os métodos atuais claramente não estão funcionando se não formos capazes de melhorar essa estatística, apesar de alguns entendimentos importantes sobre a doença subjacente e o cérebro”, compartilha Omid. 

O objetivo agora é prever as crises com um bom nível de precisão, levando a novas investigações na área. Uma convulsão pode ser prevista antes de ocorrer? A administração de um medicamento antiepiléptico, que de outra forma poderia não ter sido útil, pode desencadear um resultado diferente? Um conjunto de ideias estava se formando enquanto a pesquisa era realizada. O projeto recebeu uma bolsa do AI for Accessibility para investigar a prevenção e a previsão de convulsões com a ajuda da IA. 

O primeiro obstáculo foi o acesso aos dados. Como explica Omid, “precisamos de acesso democrático aos dados. Sem dados, sem pesquisa.” Ao fazer uma parceria com o Royal Prince Alfred Hospital, os pesquisadores puderam acessar esses dados, com o devido consentimento do paciente. “Os dados devem pertencer aos pacientes e devemos ser considerados guardiões deles. Da mesma forma, a pesquisa deve ser facilitada e a maioria dos pacientes não tem problemas com esse conceito. Se limitarmos o acesso aos dados de forma desigual, limitamos a oportunidade para os próximos avanços, que muitas vezes podem vir de fontes e pessoas inesperadas. Isso é ainda mais importante se os dados em questão foram produzidos por meio de pesquisa ou desenvolvimento com financiamento público. A exclusividade desses dados além de um certo ponto não é compreensível nem justa para os pacientes que se voluntariam para que os dados fiquem disponíveis.” 

Para prever convulsões com sucesso, a equipe da Universidade de Sydney precisava extrair biomarcadores específicos desses dados, detectando biomarcadores que indicam anormalidades na atividade cerebral. A proporção e a densidade desses incidentes representariam o início de uma convulsão. A documentação existente mostra que o cérebro percebe quando uma convulsão está prestes a acontecer e atua para interrompê-la. Do ponto de vista prático, clínicos e pesquisadores devem ser capazes de buscar padrões repetitivos e consistentes de dados no cérebro antes de uma convulsão. Ao desenvolver seu modelo de IA, eles fizeram uma parceria com o chefe de neurologia do Royal Prince Alfred Hospital, além de outros neurologistas e especialistas em epilepsia, para testar o desempenho do modelo e entender se ele levou a resultados conclusivos. 

Ao desenvolver o modelo de IA, o principal problema que os pesquisadores enfrentaram foi a pesquisa retrospectiva, que gera dificuldades no treinamento do algoritmo com o mesmo conjunto de dados que eles desejavam testar. Eles mudaram para uma abordagem de perspectiva, que considera que não há conhecimento de quando uma convulsão está ocorrendo sem dados disponíveis. Os sistemas de previsão são menos precisos a princípio, mas melhoram com o tempo conforme combinados com os sistemas de detecção e, mais importante, vão se ajustando a cada paciente. Dois artigos foram publicados sobre a pesquisa: Continental generalization of an AI system for clinical seizure recognition (Generalização continental de um sistema de IA para reconhecimento clínico de convulsões, em tradução livre do inglês) e A multimodal AI system for out-of-distribution generalization of seizure detection (Um sistema multimodal de IA para generalização de detecção de convulsões fora da distribuição, em tradução livre do inglês). 

A coleta de dados atuais é feita com a ajuda de muitos eletrodos conectados ao paciente. O próximo dilema para esse grupo de pesquisa é entender se eles podem reduzir o número de eletrodos e compensar essa redução por meio do modelo de IA. “Desejamos que a previsão de convulsões continue a melhorar. A pesquisa que estamos fazendo está impactando pessoas reais, não é apenas um desafio teórico. Estamos em contato com pessoas de todo o mundo, suas histórias são profundas e reais – de um paciente que precisa de ajuda para subir ou descer escadas, a outro que tem medo de segurar seu bebê por possíveis acidentes durante uma convulsão. O que queremos devolver à comunidade é a sua independência”, afirma Omid. 

Permitir uma maior independência para pessoas com epilepsia é uma prioridade para Francesca Fedeli e Roberto D’Angelo, cofundadores da Fundação FightTheStroke, determinados a ajudar seu filho, Mario. No Microsoft Hackathon de 2019, eles desenvolveram o MirrorHR, um aplicativo de pesquisa de epilepsia disponível em 13 idiomas e usado diariamente por centenas de famílias em 31 países. 

Francesca, Roberto e seu filho Mario 

A visão de Francesca e Roberto é criar um mundo onde crianças nascidas com necessidades especiais sejam vistas não por suas fraquezas, mas por seus pontos fortes; não pelo que não podem fazer, mas pelo que podem fazer. 

Como resultado, o MirrorHR é um exemplo de assistência médica liderada pela comunidade. A epilepsia é uma doença complexa, e as famílias muitas vezes compartilham desafios semelhantes, agravados pelo fato de o tratamento não ter mudado drasticamente nos últimos 40 anos. 

O objetivo do MirrorHR é reduzir o número e a gravidade das convulsões em crianças. Para isso, eles estão capacitando cuidadores e médicos com dados biométricos contextuais. A detecção é um elemento fundamental, mas por si só não reduz o número de incidentes. Reduzir o número e a gravidade das convulsões é o objetivo final, equipando as famílias com um entendimento melhor de quais são os gatilhos. Com as famílias rastreando sintomas e eventos, os médicos têm uma compreensão mais precisa de seus pacientes. 

As famílias gravam um diário em vídeo de um minuto, com a IA desempenhando um papel fundamental na coleta de dados de maneira privada e sem atrito. “A facilidade é um critério-chave, famílias como a nossa vivem em níveis extremamente altos de estresse. Ao reduzi-lo, esperamos criar um nível de controle. A MirrorHR começou com nosso filho, mas, ao mesmo tempo, começou de verdade com as 1.000 famílias que nos apoiam, com os médicos e as organizações com as quais nos associamos”, diz Roberto. 

Seu ethos é desenvolver o aplicativo de maneira sustentável, mantendo a privacidade no centro e expandindo o elemento da comunidade. Sua pesquisa mostra que outros tipos de doenças têm características semelhantes – impactando uma grande população, com investimentos que podem não ter crescido ao longo do tempo, levando as famílias a se sentirem muitas vezes sozinhas. Como explica Roberto “Para nós, a comunidade foi essencial, assim como a necessidade de facilidade e a possibilidade de se conectar apenas com um dispositivo móvel. Nosso sonho é criar uma plataforma para ajudar os outros. Quando começamos esta jornada, nos sentíamos totalmente sozinhos. Quando você acredita que está sozinho, é de partir o coração. Mas quando você entende que existe pelo menos outro como você, você começa a ter esperança.”

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