Controle pelo olhar: a tecnologia recupera a capacidade de interagir com o mundo
A vida seguia tranquila no interior de São Paulo. O tempo de adaptação ao trabalho na empresa de componentes para calçados tinha passado, as dificuldades financeiras e o duro período de depressão ficaram para trás. Naquele maio de 2009, nada parecia ameaçar a estabilidade conquistada por Dorivaldo Fracaroli, o Dô. Só uma estranha falta de força na mão direita incomodava.
Por insistência da esposa, Valéria, ele foi ao ortopedista e fez exames achando que o que sentia poderia ser resolvido com remédios, um tratamento sem grandes implicações. Não poderia. O que atrapalhava seus movimentos era ELA, a Esclerose Lateral Amiotrófica.
Incurável, degenerativa e cruel, a ELA afeta o sistema nervoso e paralisa os músculos. Atinge uma pessoa em cada grupo de 50 mil, e estima-se que perto de 5.000 brasileiros sejam diagnosticados anualmente com a doença. Medicamentos e tratamentos têm efeito apenas paliativo, auxiliando na qualidade de vida e retardando o progresso da doença. O paciente não melhora. Com o tempo, vai perdendo a capacidade de se movimentar, falar, engolir e até de respirar.
Aos 48 anos, com família para cuidar e um filho para encaminhar, Dô passou do diagnóstico da doença aos prognósticos para sua vida com todo tipo de sentimento: incredulidade, revolta, sentido de urgência, tristeza, resignação.
ELA seguiu seu caminho. Um ano depois, Dorivaldo teve de parar de trabalhar. Em 2010, não dava conta de dirigir o automóvel adaptado. Em mais dois anos, a comida que conseguia engolir já não era suficiente para nutri-lo e ele passou a se alimentar por um tubo inserido em seu estômago. Como teve complicações na gastrostomia, uma traqueostomia foi necessária para ele poder respirar. Ganhou ar, mas perdeu a fala.
Quando só lhe restou o piscar dos olhos como movimento, Dô começou a sonhar com um dispositivo que lhe permitisse controlar um computador, como o que o físico britânico Stephen Hawking, ilustre portador de ELA, usava para trabalhar e se comunicar. Valéria, em suas pesquisas, encontrou um equipamento, mas a família não tinha condição de pagar.
Foi então que surgiu a ideia de escrever um livro contando um pouco de sua história, dos jogos com bola de meia na infância à luta com a doença. Assim, com a renda obtida nas vendas de Ipê “DO” Amarelo, escrito em parceria com a fonoaudióloga Maria José Oliveira, Dorivaldo conseguiu comprar, em 2017, o tão sonhado dispositivo.
O Tobii Dynavox PCEYe Mini, escolhido por Dô, é um rastreador ocular que se conecta a um PC ou tablet com Windows e permite que o usuário use seus olhos como se fosse um mouse ou teclado. Basta olhar para a tela do computador e controlar o cursor do mouse com o movimento dos olhos.
Levou algum tempo para ele se entender com a calibragem do equipamento, mas nada que se compare ao esforço de piscar para sinalizar letras dispostas numa tabela de papel. “Eu precisava piscar letra por letra até formar uma palavra e depois uma frase. Nesse meio tempo, a pessoa que anotava às vezes se perdia ou eu sinalizava a letra incorreta e tinha de começar a frase outra vez. Para conseguir algumas frases, eu ficava horas piscando. Era exaustivo. Mesmo com todo empenho, entre o início dos registros e a publicação do livro, levamos aproximadamente três anos”, conta, agora piscando para um aplicativo de mensagens instantâneas que roda no Windows 10. O treino constante trouxe a habilidade: “Hoje, com meu equipamento, consigo escrever uma página em horas”, afirma.
Controle pelo Olhar
O recurso que interpreta o movimento dos olhos de Dorivaldo como se fosse um mouse chegou ao Windows 10 depois de um desafio. O ex-jogador da NFL Steve Gleason, também portador de esclerose lateral amiotrófica, enviou um e-mail para a Microsoft, pedindo aos participantes do primeiro hackathon global da companhia o desenvolvimento de uma tecnologia que permitisse que ele pudesse falar mais facilmente com a esposa e mover sua cadeira de rodas sozinho. Desse pedido nasceu a Eye Gaze, uma cadeira de rodas que Gleason pode pilotar com o movimento dos olhos e venceu o hackathon de 2014.
O projeto continuou em evolução. Três anos depois, Satya Nadella, CEO da Microsoft, anunciou que o Windows 10 incluiria suporte integrado ao rastreamento dos olhos e o Controle pelo Olhar (Eye Control), uma experiência inspirada no projeto da cadeira de rodas. É esse recurso que habilita as pessoas com deficiência a operar na tela um mouse, teclado e experiência de texto-para-voz usando apenas seus olhos. Requer um hardware rastreador de olhos compatível, como o Tobii de Dorivaldo.
E jogar só com os olhos também é possível. Em junho passado, a Microsoft lançou quatro novos jogos Eyes First para Windows, incluindo Tile Slide, Match Two, Double Up e Maze. Esses jogos são equipados com APIs de rastreamento ocular do Windows 10 e podem ser usados com ou sem o Controle pelo Olhar.
A Microsoft também está envolvida em um grande projeto em busca de cura para a esclerose lateral amiotrófica. O Answer ALS (Resposta a ELA) tem a missão de reunir dados clínicos, genéticos, comportamentais, moleculares e bioquímicos de pacientes com ELA.
O investimento da Microsoft, de US$ 1 milhão em recursos de computação em nuvem para a Fundação Answer ALS, permitirá colocar o enorme repositório de dados à disposição de pesquisadores em todo o mundo. Com a ajuda de inteligência artificial e aprendizado de máquina, os cientistas poderão analisar os dados para descobrir novos insights sobre as causas da doença e desenvolver possíveis tratamentos terapêuticos.
A vida, de volta
Uma cura pode estar distante no futuro, mas a tecnologia do presente já é um enorme avanço. “Santa tecnologia!”, comemora Dorivaldo. “A minha vida foi transformada por ELA, mas a tecnologia me devolveu dignidade ao me auxiliar como pai, orientando e opinando nas decisões do meu filho; como esposo, perguntando sobre o dia atarefado da minha esposa e auxiliando em questões do trabalho ou de nossa família; como amigo, enviando mensagens de carinho e gratidão por tudo o que fazem por mim; com parentes distantes, que me dão notícias e sabem notícias minhas. Graças à tecnologia, vejo sentido na comunicação. Torço para que muita gente, como eu, tenha acesso ao sistema.”
Dorivaldo acessa sites e envia mensagens apenas com a movimentação dos olhos.
Apesar de dominar bem o rastreador ocular, Dorivaldo demora um pouco para digitar e “às vezes cometo uns erros ortográficos”, diz, modesto. Usa um aplicativo de mensagens instantâneas para se comunicar com outras pessoas, mas só o faz à tarde – as manhãs são dedicadas à fisioterapia. No Word, escreve seu segundo livro, sobre a história de Boraceia, sua cidade natal. Conta que, na coleta de informações, descobriu que os primeiros habitantes desse pequeno município do interior paulista, hoje com cerca de 4.500 moradores, foi um casal de índios que chegou lá navegando de canoa pelas águas do rio Tietê.
As possibilidades de se comunicar com o mundo pelo movimento dos olhos ampliaram os horizontes e os projetos de Dô. Um terceiro livro está a caminho, sobre culinária. Mesmo sem poder mastigar e engolir suas refeições há cinco anos, Dô mantém vivos os sabores e aromas da comida caseira no canal Dorivaldo Fracaroli Receitas Naturais que criou no YouTube. “Toda terça e toda quinta-feira eu posto um vídeo de receitas que são preparadas aqui em minha casa e acompanho passo a passo seu desenvolvimento. Após o término da filmagem, eu mesmo edito e posto”, diz com orgulho.
A vida segue animada em Boraceia.