Conheça o primeiro uísque criado por IA

Aqua vitae. Uisce beatha. Uísque.

Há mais de mil anos, monges viajantes migraram da Europa continental para descobrir novos mundos. Seus caminhos os levaram à Escócia e à Irlanda, e entre sua sabedoria coletiva estava o conhecimento da destilação – o processo de extração e purificação de líquidos.

Sem as vinhas e uvas de suas terras de origem, eles começaram a fermentar um “purê” de grãos – mistura de água, grãos e fermento – e, ao fazê-lo, apresentaram o primeiro uísque ao mundo.

Derivado da palavra gaélica uisce, que significa água, o álcool destilado era conhecido em latim como aqua vitae, ou água da vida. O termo foi traduzido para irlandês antigo como uisce beatha, antes de várias versões no início do inglês que nos deram o uísque (whisky ou whiskey, em inglês) que conhecemos hoje.

Desde esses primórdios, a produção de uísque se espalhou por todos os cantos do mundo. Da Irlanda e da Escócia ao Japão, aos EUA, à Austrália e muito mais, essa arte antiga atravessou culturas e fronteiras, com cada destilaria inserindo sua própria alma em cada mistura.

A Mackmyra Whisky, com sede na Suécia, é uma dessas destilarias. Fundada em 1999, depois que oito amigos decidiram criar seu próprio uísque, ela já ganhou vários prêmios internacionais, e seu Master Blender foi recentemente incluído no hall da fama da Whisky Magazine. As ambições da destilaria, no entanto, vão muito além.

Com a empresa de tecnologia finlandesa Fourkind e a Microsoft, a Mackmyra está criando o primeiro uísque do mundo desenvolvido com inteligência artificial (IA). Em uma indústria sinônimo de tradição arraigada, perícia humana e habilidade, o que acontece quando técnicas de mil anos de idade encontram a tecnologia avançada do século 21?

Está tudo na mistura

Para entender melhor o papel de um destilador de inteligência artificial, primeiro precisamos entender o que dá ao uísque seu caráter distinto. Os uísques não são apenas diferenciados pelos seus diferentes ingredientes, mas também pelos barris de madeira queimados em que são armazenados. Em vez de meros recipientes, os próprios barris desempenham um papel vital ao dar a cada mistura o seu sabor único.

Quando o uísque é destilado pela primeira vez, é um líquido claro que pode ter uma característica elegante ou esfumaçada. Para obter o rico aroma, sabor e cor que estamos acostumados a ver, essa forma clara, conhecida como new make, precisa passar pelo menos três anos (geralmente muito mais tempo) em tonéis de madeira. Esta é a fase de maturação, onde ocorre a importante infusão de sabores.

Com o tempo, os uísques começam lentamente a assumir a cor, o aroma e os sabores dos barris em que estão armazenados, o que inclui também os sabores e aromas dos seus conteúdos anteriores, como bourbon, xerez, vinho ou outras bebidas alcoólicas. “A partir desses barris, podemos gerar centenas de milhares de uísques diferentes”, afirma Angela D’Orazio, Master Blender da Mackmyra.

Mestres destiladores podem passar suas vidas inteiras meticulosamente degustando, aprimorando e experimentando para criar os melhores sabores possíveis, transformando atos de química em uma forma de arte – e é aí que a Mackmyra quer que a IA faça sua mágica.

“Nós sempre nos esforçamos para desafiar as tradições do comércio de uísque, e isso é algo que podemos realmente fazer agora com a ajuda da IA. Vemos a IA como parte de nosso desenvolvimento digital, e é realmente empolgante deixar a IA ser um complemento do ofício de produzir uísque de alta qualidade. Como Master Blender, é uma grande conquista poder dizer que agora sou também a mentora do primeiro uísque criado por IA no mundo”, diz D’Orazio.

Esta é a primeira vez que a IA foi usada para aumentar e automatizar o processo mais demorado de criação de uísque. De acordo com D’Orazio: “É muito mais complexo do que os modelos usados para criar cerveja, devido ao grande número de combinações disponíveis, e ao fato de que a geração de receita de uísque é mais arte do que engenharia.”

Gerado pela IA, com curadoria de pessoas

Os seres humanos sempre selecionaram as diferentes misturas de ingredientes e barris para criar combinações de sabores quase infinitas.

Atualmente, os modelos de aprendizado de máquina da destilaria, equipados com a plataforma de nuvem Azure da Microsoft e os serviços cognitivos do Azure, são alimentados com as receitas da Mackmyra (incluindo as de misturas premiadas), dados de vendas e preferências do cliente. Com este conjunto de dados, a IA pode gerar mais de 70 milhões de receitas que ela prevê serão populares e da mais alta qualidade, com base nos tipos de barris existentes no depósito.

Isso não é apenas mais rápido do que uma pessoa realizando o processo manualmente, mas graças à capacidade do algoritmo de filtrar e calcular uma grande quantidade de dados, combinações novas e inovadoras que, de outra forma, nunca seriam consideradas, podem ser encontradas. É importante ressaltar, no entanto, que essa solução de inteligência artificial não foi projetada para substituir um Master Blender.

“O trabalho de um Master Blender não está em risco”, afirma D’Orazio. “Embora a receita do uísque seja criada pela IA, ainda nos beneficiamos da experiência e do conhecimento de uma pessoa, especialmente da parte sensorial humana, que nunca pode ser substituída por nenhum programa. Acreditamos que o uísque é gerado pela IA, mas com a curadoria do homem. Em última análise, a decisão é tomada por uma pessoa.”

Além do vidro

O uísque criado por IA da Mackmyra estará disponível no último trimestre de 2019. De acordo com a destilaria, esta é a primeira vez que uma receita complexa de produtos de consumo foi criada com o aprendizado de máquina – mas o uísque é apenas o começo.

“Esta geração de IA pode ter impacto em diferentes setores globalmente”, diz Jarno Kartela, Parceiro de Aprendizado de Máquina da Fourkind, a empresa por trás do algoritmo de IA. “Eu imagino sistemas de IA gerando receitas para doces, perfumes, bebidas e talvez até designs de tênis. Muitos destes já foram tentados, mas a adoção em larga escala ainda está atrasada.”

“Estamos mostrando o caminho a seguir, e essas novas soluções de inteligência artificial podem ser usadas para gerar produtos que mantenham o espírito, a aparência e a sensação das marcas por trás deles e, ao mesmo tempo, sejam novos e únicos”, continua Kartela.

Um futuro onde o poder e a velocidade da inteligência artificial estão emparelhados com a engenhosidade e a perícia de uma pessoa para quebrar novos limites? Nós certamente vamos beber a isso.